DE UM DISCURSO DE SOBERANIA A UMA LADAINHA DE LOUVOR ÀS “CELEBRIDADES”

 ou

POR FAVOR, TENHAM PACIÊNCIA…

 

 

 

 “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”.  

 

 

  

      1. A notícia, publicada no Estadão > Notícias > Internacional, pôde ser lida nos últimos dias de fevereiro recém-findo:

O ministro da Defesa da Rússia, Serguei Shoigu, afirmou nesta quarta-feira (26) que o país já tem ‘negociações avançadas’ para a instalação de bases militares em países como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Vietnã. A declaração foi dada horas depois do início de um exercício militar russo na região de fronteira com a Ucrânia.”  

 

      2. Transcrevo agora as palavras de um Chefe de Estado sobre o comportamento de uma Nação Soberana – faz tempo que, por aqui, ninguém mais ouve ou lê a respeito disso e quase todos já se esqueceram do que possa significar:

Não devemos pautar nossa atitude nem por maquiavelismo matuto nem por uma política de extorsão. Reciprocamente, não devemos dar adesão prévia às atitudes de qualquer das grandes potências – nem mesmo às potências guardiãs do mundo ocidental, pois que, na política externa destas, é necessário fazer a distinção entre os interesses básicos da preservação do sistema ocidental e os interesses específicos de uma grande potência”.

      Essas palavras, que pertencem ao discurso intitulado “A Diplomacia da Revolução Brasileira”, foram escritas pelo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco e por ele enunciadas por ocasião da entrega de diplomas aos aprovados à Carreira de Diplomata, em 31 de julho de 1964 – no auge da Guerra Fria.  

 

      3. Em seguida, trago-lhes um trecho da conclusão de um artigo de Túlio Sérgio Henriques Ferreira – “A ruína do consenso: a política exterior do Brasil no governo Figueiredo (de 1979 a 1985)” – publicado na Revista Brasileira de Política Internacional vol.49 no.2 Brasília, Jul-Dez/2006:

Idéias preestabelecidas sobre períodos históricos pouco estudados não são boas guias para o analista. No mínimo, exigem cuidados, olhar desconfiado. (…) Pela coleta de fontes que expressavam as idéias defendidas por diferentes atores influentes na formulação e execução da política externa, demonstrou-se que o Universalismo não foi o único projeto de inserção internacional brasileiro a ganhar voz na gestão do último general presidente do ciclo militar (…) a conjuntura impediu a existência de somente uma matriz propositiva para a inserção externa da nação. Por meio das críticas aos pressupostos do Universalismo, evidenciou-se o dissenso no interior das estruturas burocráticas do Estado brasileiro. (…) [Na] análise, firmou-se a pertinência da utilização de teoria que concebe o Estado como permeável ao jogo político, e não como estrutura monolítica que age verticalmente impondo ações no corpo social (…) a burocracia estatal é analisada em sua complexidade, tomada como estrutura que abriga em seu interior grupos de pressão com múltiplas idéias e interesses na luta pelo poder. (…) pode-se apontar a conjuntura crítica vivida pelo governo Figueiredo que levou ao esgotamento do modelo de desenvolvimento por substituição de importações, baseado em forte atuação ‘empresarial’ do Estado e financiado por capitais externos. Outro limite foi dado pela conjuntura econômica internacional que causou fortes constrangimentos à economia brasileira. Conjugou-se a tais fatos adversos do campo econômico, o processo de Abertura política conduzido pelo governo que também implicava redistribuição de poderes na sociedade. Tal conjuntura tornou possível o dissenso, tanto por parte da oposição, como por atores que anteriormente compunham a aliança legitimadora do governo militar. (…) diferentes projetos para a melhor inserção internacional do Brasil (…) eram decorrentes da percepção que os diferentes grupos possuíam da conjuntura e do papel que o país deveria assumir no sistema internacional. (…) Guerreiro sempre defendia que a postura do Brasil no mundo não era questão de escolha, mas imposta pela especificidade do país. Mas, a aproximação com o Terceiro Mundo não deveria significar o abandono ou o desprezo em relação às relações com o Primeiro Mundo. O chanceler (…) defendia que nem tudo se resumia à economia. (…) Em contraste com (…) postura de maior autonomia em relação aos centros de poder do norte (marcadamente em relação aos norte-americanos), estabeleceu-se um grupo de atores que propunham novos rumos para as relações internacionais do país.

 

      4. E, ao final de tudo, transcrevo a primeira versão de um artigo que acabo de ler: “É meu dever dizer aos jovens o que é um golpe de estado [sic]”, de Hildegard Angel, que foi publicado em 20/21 de fevereiro em diferentes blogues e, com correções de avaliação posteriores, é encontrado no da própria cronista social que o assina (http://www.hildegardangel.com.br/?p=35008). Dele retirei as palavras que são colocadas, aqui, como epígrafe. A foto que o ilustra se incluirá ao pé desta página.

 

***

 

      Se, aqui e agora, os três textos anteriores dispensarão qualquer comentário, este último faço questão de comentar.

 

      A foto que ilustra o artigo não é a de um jantar alegre que reúna uma quadrilha que se empavona no poder emanado do Planalto Central e esteja a passeio pelo mundo. Reparem nela, por favor. É uma foto de tanques do Exército embandeirados. Ao fundo, o antigo Ministério da Guerra, no Rio, e o monumento erguido em honra a Caxias, nosso exemplar Comandante em Chefe de todos os tempos. Suponho que essa foto também seja de 1964, tal como o citado discurso de Castelo. Está na web, sem data, com as marcas do arquivo do Exército e do sítio Defesanet, que foram apagadas grosseiramente para que parecesse uma foto de arquivo jornalístico (o que “comeu” detalhes da lagarta mecânica vista em primeiro plano). Há povo nas ruas? Não. Não há multidões agitadas com ou sem direção, não há a torcida de um time, não há uma turma, não há um bando. A foto indica que nas ruas estariam apenas os Soldados, que haviam sido, antes, chamados por grande parte do povo a acudir o Estado – ou seja, nas ruas estaria a porção do povo que, por ele mesmo, pelo próprio povo, é encarregada, em última instância, da defesa e da segurança do Estado. Há cartazes e bandeiras partidárias? Não. A única Bandeira que se vê, sobre os tanques, sombreando os Soldados, é a do Brasil. Essa imagem não é “fictícia” – é uma imagem da realidade de um dado momento. E tem um significado – que não é aquele que artistas e críticos de Arte lhe possam emprestar. Ninguém deveria precisar explicá-lo ou interpretá-lo. Muito menos alguém precisaria interpretar ou explicar o significado da Bandeira Nacional, que representa a Nação e o Estado brasileiros, nada menos e nada além. Na foto, eles, e apenas eles, a Nação e o Estado brasileiros, apresentam-se. Em armas. 

 

      Cabe, aqui, lembrar que o nosso Estado contava, desde que um Estado ele se tornou, com um Ministério dos Negócios da Guerra – ou seja, dos assuntos da guerra. O Estado contava com esse Ministério para sua própria defesa. Porque sabíamos o que eram guerras, apesar de que ninguém de bom juízo alguma vez as pudesse ter desejado. Principalmente os Soldados sabiam o que era uma guerra, mas não apenas eles – todos sabiam. Principalmente os Soldados e as famílias dos Soldados não queriam guerras, mas nenhum deles se recusava a lutar. A lutar pelo Estado brasileiro e pela Nação brasileira. Na 1ª República, o órgão público perdeu as palavras “dos Negócios” – passou a denominar-se Ministério da Guerra. E, um belo dia, desapareceu. Não que hoje não haja mais guerras ou não estejamos nelas – apenas hoje não mais sabemos o que seja uma guerra. Nem temos qualquer idéia do que possam ser as razões de uma guerra. Ninguém sabe. Se não soubermos o que seja determinada coisa, não saberemos para que essa coisa serve, por que ela pode ou deve existir ou por que possa subsistir. Se não soubermos o que seja determinada coisa, essa coisa não poderá ser reconhecida e/ou nomeada, nem que ela se coloque sob o nosso nariz. Imaginamos que, hoje, tudo se resolva na ONU, nas Cúpulas, nas Copas, em festivos campeonatos esportivos – de futebol, de bola de gude ou de cuspe à distância. E que vença o melhor nos dribles, na marcação do adversário, no grito ou no apito, sob o aplauso de todos! Não que, com isso, haja paz no mundo. Não que com isso não mais haja Soldados em nosso território. A diferença entre ontem e hoje é que, hoje, formamos nossos Soldados para emprestá-los às guerras que são travadas no exterior por interesse de outros Estados. Eles deverão lutar e, por vezes, morrer pela… paz mundial… seja lá o que for isso, acreditando que possam levar, ao mundo todo, tudo aquilo pelo que, em seu próprio País, passaram a se considerar não-responsáveis.

 

      Levando em conta e a sério, entre outras obviedades, que uma guerra nada mais é que a continuação da Política por outros meios, haverá guerras cruentas e guerras incruentas. Há duas formas de entrar em uma guerra: como soberano, com poder econômico nacional e força nacional armada, ou como força armada e/ou econômica auxiliar. Há duas formas de sair dela: como vencedor ou como vencido. Há duas formas de não entrar em uma guerra: por uma decisão política, isolando-se em “neutralidade” e assumindo os riscos dessa omissão, ou por força das circunstâncias que refletem a força da insignificância: quando nada houver a oferecer para colaborar com os envolvidos e nada houver que possa ser alvo da cobiça destes. Para que não haja guerras é preciso que não haja Política. Nenhuma “filosofia” é capaz de derrubar esses fatos que são fatos, mas que, na concepção rasteira de alguns, poderiam ser apontados como uma forma “maniqueísta” de ver o mundo. Não é. Aqui não se trata de dizer de “O Certo” x “O Errado”, de “O Bem” x “O Mal”, ou de como tudo “deveria ser”. O certo e o errado, assim como o bem e o mal, não são absolutos – sua percepção, sua visão, sua antevisão sempre dependerão da posição em que nos colocarmos e os avaliamos em relação a nós mesmos – o que implica avaliá-los em relação aos nossos, considerando-os, em seus limites, o mais amplamente possível, porque os nossos não são todos e, nos nossos, nós nos projetamos, quer queiramos, quer não. E Soberania não se confunde com qualquer “livre arbítrio” do Governo segundo seus caprichos. A Soberania, sim, é absoluta, e diz respeito exclusivamente ao Estado-Nação e ao comportamento do Estado-Nação. Soberanos, mesmo que não se temam, respeitam-se mutuamente. Apoiar um eventual “amigo” contra um eventual inimigo comum não fere a Soberania. Mas quando decidimos que devemos “relativizar” a nossa Soberania em benefício de uma organização política supranacional qualquer, mesmo que seja uma associação de Estados ditos Soberanos, se não a liderarmos direta ou indiretamente, estaremos imediatamente abdicando da Soberania e nos tornando lacaios de seja lá de quem for. Toda e qualquer Liga, desde os tempos de Esparta e Atenas, se não antes, forma-se em torno de uma liderança que se destaca dos liderados pela evidência de sua inteligência e de seu decorrente poder.   

 

      Com o território, a população, a posição geográfica e os recursos naturais que temos, não podemos nos dar ao luxo de acreditar em que passaremos pelo mundo desapercebidos e seremos desconsiderados nos planos estratégicos das grandes potências e das não tão grandes assim. Para chegarmos, do discurso altivo de Castelo Branco, ao ponto de inconsistência nacional e de subserviência aos interesses alheios em que nos encontramos hoje, razões muito complicadas, tão complexas que de “razões” não poderiam ser chamadas e só poderiam ser justificadas por intelectos muito “sofisticados”, foram alegadas e propagandeadas ao público de forma superficial, mas, por isso mesmo, muito eficaz. E por muitos de nós foram assimiladas, depois de consideradas “óbvias” e “muito bem esclarecidas”. Por essas mesmas razões ou por razões conexas, em um mesmo processo, o mesmo Governo que instalou uma “Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos” enquadrou o antigo Ministério da Guerra (já “democraticamente” denominado, desde 1967, por respeito às demais Armas nacionais, de Ministério do Exército) e os Ministérios das demais Armas em um Ministério da Defesa, retirando das nossas Forças Armadas – as forças da Nação e do Estado brasileiros em armas ostensivas, cuja função é intervir em situações de guerra e/ou em ameaças de guerra, para preveni-las – o poder de participar diretamente das decisões de Estado. Com o que as Armas nacionais perderam sua específica função – uma função eminentemente política.

 

      Se a questão nacional, que é grave e a cada dia se torna mais grave, deve ser enfrentada e discutida com base em “o que digo eu aqui” versus “o que diz aquele outro ali”, se as nossas verdades públicas devem ser encontradas nos álbuns de família ou em depoimentos de testemunhas que ouviram dizer, não nos fatos e na razão dos fatos, e se isso significa saber, não há por que dar ao que digo atenção menor que a que possa ser dada ao que diga qualquer um – exceto uma simpatia ou uma antipatia gratuita. Por isso me manifesto. Se o outro é o outro, eu sou eu, caramba! E daí? Não sou uma “celebridade”, mas muita gente me conhece, assim como muita gente conhece muita gente, apesar de que nenhum de nós saiba tudo de tudo e de todos.

 

      Podemos até nem sequer saber muita coisa a nosso próprio respeito. Mas todos nós bem sabemos o que seja sofrer uma perda, ou duas, ou três, ou muitas mais. E sabemos sofrer muito, sofrer intensamente, profundamente. E quase todos nós também sabemos superar nossas perdas e nosso sofrimento. Não só porque lemos muito e não apenas as críticas de Arte, as poesias e as crônicas sociais, como porque muito perdemos, muito sofremos e muito precisamos saber superar. Eu também sei como fazer tudo isso. E, se nem todos sabem, eu bem sei também o que é uma guerra. E por quais razões inimigos se reconhecem como inimigos e com que disposição se enfrentam em uma guerra. Não só porque leio muito e não apenas as críticas de Arte, as poesias e as crônicas sociais, como porque guerras que o Brasil enfrentou foram vividas e discutidas em minha casa, pelos meus, por gerações consecutivas, inclusive as ditas guerras “civis”. E sei o que é dedicar-se à defesa e à segurança do Estado. Não só porque leio muito e não apenas as críticas de Arte, as poesias e as crônicas sociais, como porque gerações que me antecederam deram suas vidas ao Estado brasileiro. Não eram cronistas, não eram poetas, não eram “filósofos” – eram Soldados, eram filhos e filhas de Soldados, eram mulheres de Soldados. Se alguns se criaram em outros ambientes, muito diferentes, eu me criei nesse, e muitos outros se criaram nesse mesmo ambiente ou em outros muito semelhantes, respeitando os mesmos valores, respirando Política, e saberão do que digo. Sei muito bem, também, o que é um golpe de Estado. Ninguém me explicará que diabos vem a ser isso – eu mesma sou capaz de explicar muito bem explicado a quem quiser saber, jovens ou velhos. Não só porque leio muito e não apenas as críticas de Arte, as poesias e as crônicas sociais, como porque golpes que o Estado brasileiro sofreu ou poderia ter sofrido foram vividos e discutidos em minha casa, por gerações sucessivas. E por mim, e por outros muitos mais, principalmente o último, em 1988, do qual sofremos hoje os terríveis efeitos. Sei, ainda, quem quis, quem deu e quem quer dar outros golpes em nosso Estado – Estado este que deveria, como a boa Gramática da boa Escola nos ensina, ser escrito com E maiúsculo, sempre, por todos, especialmente pela Imprensa, que, quando não mais ainda pretenda, vem pretendendo ensinar História, mas ensina, de fato, a escrever (e deveria ensinar bem). E que golpes de Estado nada têm a ver com certo refinamento à mesa e, em geral, nada têm a ver com a fome das multidões – em geral, têm muito a ver com o apetite de alguns poucos, apenas. E sei que o nosso Estado não é qualquer “estado de espírito” particular, nem mesmo será um “estado de espírito” coletivo. Ele é um Estado, o nosso, com E maiúsculo. Ou “ainda” é. Mas nem todos sabem o que seja um Estado… e quase ninguém quer saber. Especialmente os muito jovens. E muitos dos mais velhos, que poderiam saber, já se esqueceram.

 

      Todos esses anos que vivi e muitos viveram, e muitos outros mais, anteriores, que marcaram muita gente, também me marcaram; marcaram os mortos que me eram queridos e os vivos que queridos me são, marcaram suas expectativas e suas emoções, marcaram minha educação, minha personalidade, marcaram minhas expectativas, minhas experiências… marcaram minha vida, meu raciocínio e meu coração. Exatamente da mesma forma como marcaram a vida, o raciocínio e o coração de muitos e muitos outros mais, que muitos e muitos outros mais conhecem seja mais ou menos intimamente. Mas nem minha vida nem a vida dos outros, a vida de ninguém servirá de modelo de bem viver ou de boa consciência para quem quer que seja. Porque a ninguém servirá de experiência. Muito menos servirão de experiência as emoções alheias. Porque de ninguém substituem a própria experiência, muito menos substituem o saber e a inteligência.

 

      Há quem os meios de comunicação de massas transformam em “celebridade”; há quem, por isso, considere-se acima de todos os demais;  há quem julgue suas alegrias, suas dores e suas frustrações muito mais importantes e muito mais justificadas que as alegrias, as dores e as frustrações do comum dos mortais; há quem se habituou a atribuir a “culpa” por sua particular infelicidade à nossa gente, em especial à nossa classe média – que seria “o inimigo” -, lançando-lhe um olhar de desprezo semelhante ao que um rei tribal lança às formigas do seu terreiro que lhe picam os pés, e habituou-se a, nessa nossa gente, encontrar os “culpados” por suas aflições, desconsiderando a responsabilidade de sua própria trupe e  sua própria ignorância quanto à realidade; há quem se “preparou desde a infância para ser atriz” e ficou “por aí”, como “barata tonta”, “vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica” da profissão de colunista social que lhe rendeu aplausos e uma suposta “insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito” de julgar alguém  “por ter sobrevivido”. Podemos, assim, todos nós, compreender que será muito difícil, muito e muito difícil que alguém que tenha apoiado sua vida de muitos anos nessas circunstâncias aceite abrir mão da “majestade” que lhe foi atribuída por alguns “muitos queridos amigos” ou simplesmente possa ter sido auto-atribuída… Será muito difícil porque, dessa “majestade”, tal personalidade estará firmemente convencida.  

 

      Nem por isso todos os demais, que hoje vivem o século XXI e viveram, na década de 60, o século XX, serão ou deverão sentir-se como tendo sido representativos de “uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma ‘invasão vermelha’, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.

 

      Muito bem. Cá, de minha insignificância e de minha pouca sensibilidade ou da absoluta falta dela (?), ouso fazer perguntas que deveriam ser respondidas, intimamente, por todos os que se digam interessados em Política e, em especial, na Política nacional. Se a tal frota “americana” navegava célere, em 1964, em nossa direção, quem a fez recuar? Ela vinha em nossa direção por quê? Recuou por quê? Não deveria ter recuado? Tendo ela recuado, que foi evitado? Deveriam os marines norte-americanos ter desembarcado em nosso território? Deveríamos tê-los enfrentado? Em nome de quê? De quem? Nós nos esquecemos, por completo, de que vivíamos no calor da Guerra Fria? Não sabemos que significou essa Guerra Fria? Ou é que, hoje, nós “devemos” nos esquecer do que ela significou ou significa? Que é o que “a mídia” vem antevendo hoje? Sua percepção brota da perspectiva de quem? Que é o que nos indica, hoje, que certa porção da mídia não nos esteja pretendendo fazer uma “perversa lavagem cerebral” ao apontar uma “frota americana” e não uma “invasão vermelha” se aproximando célere em nossa direção? Qual das duas “devemos” preferir: a frota ou a invasão? Apenas uma delas “devemos” temer? Que é possível fazer para enfrentá-las ou para evitá-las? Que é o que nos indica que certa porção da mídia não pretenda apenas nos “desinformar” e nos “aterrorizar”? Como nos precaver de certa porção da mídia que nos parece ignorante, tendenciosa e mal intencionada, inclusive quando incita uma frenética comoção popular sob aplausos de autoridades supranacionais que incentivam o culto às nossas “celebridades” chinfrins, consideradas pelo vulgo como “soberanos” em seus nichos institucionais ou privados ou mesmo em sua individualidade, e que promove qualquer dramalhão de folhetim a “legítima” obra de “Arte de Vanguarda”?

 

      Há 25 longos e árduos anos foi dado o mais recente golpe de Estado no Estado brasileiro – quando pôde ser elaborada uma “Constituição” que, fragilizando os conceitos de nacionalidade e de Estado Nacional, abriu caminho a que se fragilizasse o conceito de Soberania e a que ele, o nosso Estado, pudesse ser desconstituído em uma quimérica, em todos os sentidos, “comunidade latino-americana de nações”. Foi um golpe branco, branco-sujo, mas foi um golpe, sim. Esse golpe lhe/nos foi dado porque permitimos que fosse dado. É meu dever, portanto, dizer aos jovens – e aos não tão jovens – que não nos devemos esquecer de que a História se e nos concede idas e voltas, avanços e retrocessos, e de que ela nem se faz em um único dia nem se faz por uma única vontade. É meu dever, portanto, dizer aos jovens – e aos não tão jovens – que tenham alguma paciência. É bom, é essencial, é vital que tenham paciência neste momento. Não tolerância, que ser tolerante com o erro é suicídio; tolerância não, resignação nunca – mas paciência, sim, no bom sentido, no sentido da perseverança, para que possam pensar e agir com cautela, com prudência, com sensatez, com inteligência, sem se desesperar, sem seguir o canto de sereias que sabem ser tão “ensaboadas” quanto peixes que nos escorregam das mãos, sem atropelar a História, sem perdê-la de vista, fazendo-a acontecer no sentido correto de nossa perspectiva, a da Nação brasileira, nas condições adequadas, no momento certo e seguro. 

 

      Digo-lhes que tenham paciência porque este é o meu dever. Digo-lhes que tenham paciência, por favor, muito embora esteja começando a perceber que, no sentido de “calma”, eu própria já não tenha mais muita paciência. Confesso que por vezes me enfureço, e muito, como muitos se enfurecem, pois já estou, como muitos estão, pra lá de farta desse estúpido, ridículo e personalíssimo embuste a nos massacrar diariamente, sendo durante tantos e tantos anos encenado por supostas “ex”-crianças-prodígio que, mesmo que já tenham cabelos brancos, a cara enrugada, estejam sujando os chinelos e babando na gravata, não conseguem alcançar a maturidade emocional e intelectual, ou simulam não conseguir. Esses “iluminados” ainda pretendem que creiamos que o mundo gira em torno de seus próprios umbigos. E nos recitam versinhos encruados em linguajar manhoso e tatibitate com objetivo de tentar justificar a voluntariedade e as travessuras “guerrilheiras” indubitavelmente terroristas à época em que foram reprimidas pelo nosso Estado, igualmente criminosas hoje, quando pretendem limitar-se ao âmbito financeiro e “devem” ser perdoadas por recomendação dos insanamente pródigos e dos ditos “politicamente corretos”. E muitos são os que lhes dão atenção. Por mera desatenção.

 

      Nada disso é minimamente sério ou pode ser levado minimamente a sério. Todos nós sabemos disso. A inocência e o idealismo invocados são falsos – seriam, no máximo, desorientação, ignorância e irresponsabilidade, que deveríamos lamentar, não festejar, nunca perpetuar, em hipótese nenhuma cultuar. Além de que, em certos casos, correspondiam a uma intenção consciente, uma intenção estúpida. E já foram mais que desmascarados, não por depoimentos, mas por fatos evidentes. Insistir em alegar inocência e idealismo e, especialmente, inteligência em atos de terrorismo, na conivência direta ou indireta com atos de terrorismo, nos incentivos explícitos ou velados a atos de terrorismo, insistir em rotular de “terrorismo de Estado” (?!) os atos de combate a atos de terrorismo  praticados contra o Estado não é somente desrespeitoso – é muito desaforado, além de ser muito maçante, quando não muito irritante.

 

      Mas… tenham paciênciaE nos ajudem, ajudem todos nós a também ter paciência, a avaliar os fatos com sensatez, a bem definir objetivos, a definir como bem perseguir esses objetivos e a ter perseverança. A bem compreender e a reaprender a respeitar a boa Política. Porque a impaciência apenas nos traz o sério e grave risco de apostarmos em uma “ação pela ação” como reação ao marasmo, o de provocar uma precipitação descontrolada de elementos que nos são nocivos mas estão bem organizados, bem plantados e bem protegidos em seus covis, e o de mais ainda aprofundar e acelerar esse nosso já tão longo e profundo processo de decadência em direção ao nada. Um processo longo e profundo demais… Paciência…

 

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“É meu dever dizer aos jovens o que é um golpe de estado”

“Neste momento em que um golpe ronda um país vizinho, é meu dever dizer aos jovens o que é um golpe de estado”

Hildegard Angel

Neste momento extremamente grave em que vemos um golpe militar caminhar célere rumo a um país vizinho, com o noticiário chegando a nós de modo distorcido, utilizando-se de imagens fictícias, exibindo fotos de procissões religiosas em Caracas como se fosse do povo venezuelano revoltoso nas ruas; mostrando vídeos antigos como se atuais fossem; e quando, pelo próprio visual próspero e “coxinha” dos manifestantes, podemos bem avaliar os interesses de sua sofreguidão, que os impedem de respeitar os valores democráticos e esperar nova eleição para mudar o governo que os desagrada, vejo como meu dever abrir a boca e falar.

Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.

Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.

Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.

Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…

Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.

Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.

Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.

Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!

A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.

Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.

As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou por quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.

E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.

Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre as “malas do Golbery” ou as “comissões das turbinas”, as “compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.

E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.

Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil lhe roubar o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome as homenagens ao seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.

Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.

Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.

Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para isso e já ter alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.

Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver, apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar aos meus mártires, e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que possa multiplicar.

E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!

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