EM TRÊS TEMPOS,

da falsa Sociologia, da desinformação absoluta, da idiotice de alguns, da liberdade de todos… ao salve-se quem puder.

 

 

 

 

 

…na minha infância, havia primeiro o ‘Correio da Manhã’, um jornalaço. E havia ‘A Noite’ – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. (…)  O sujeito comprava ‘A Noite’ disposto a ler ou disposto a não ler. (…) Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: ‘Morreu cantando’ (…). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer. Nelson Rodrigues, em entrevista publicada em http://www.geneton.com.br/archives/000012.html

 

1º tempo

A pretexto de “informar” o público, o vídeo “O primeiro rolezinho: minidocumentário sobre invasão a shopping da Zona Sul do Rio em 2000 – uma excelente reflexão sociológica” foi divulgado nas redes sociais (http://www.youtube.com/watch?v=UHJmUPeDYdg&feature=player_embedded).

 

2º tempo

O leitor da Folha de S. Paulo seria “bem informado” lendo a coluna de Hélio Schwartsman – “Liberdade, igualdade, rolezinhos”  (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2014/01/1400256-liberdade-igualdade-rolezinhos.shtml) que destaca, entre outras coisas mais, que “são absurdas as liminares que pretendem proibir a realização de rolezinhos. … A moral da história é que liberdade e igualdade, embora tenham inspirado a Revolução Francesa, são princípios incongruentes.

 

3º tempo

Ao leitor da BBC-Brasil, um título e um comentário também “informariam” (http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/01/140120_rolezinho_shopping_classe_c_mm.shtml): “Shoppings ‘ignoram potencial de consumo da classe C’ ao coibir rolezinhos, diz pesquisa“.

 

*** 

      Qualquer manifestação pública espontânea de um grupo qualquer, especialmente uma ocupação do espaço público, seja pacífica ou violenta, será, por certo, motivo suficiente para uma reflexão sociológica, nem que seja uma reflexãozinha muito leve e muito breve, pois essa manifestação apenas pertencerá a um processo muito mais amplo e complexo e necessariamente nele se encaixará. Tentar compreendê-la e analisá-la como um detalhe, ou mais um, em um processo e decodificar esse processo são funções da boa Sociologia. Assim, quem sabe o que Sociologia é, e sabe para que diabos essa disciplina serve, não chamará de “reflexão” a evidência de qualquer manifestação pública ou de “sociológico” qualquer “achismo” a respeito dela. 

 

      Que vemos no vídeo indicado? Um bando de indivíduos que se dirige a um centro comercial; em seguida, ocupa os espaços; a vendedora solicita aos que não pretendam experimentar alguma peça de roupa nos provadores que desocupem a loja; as crianças comem pão com mortadela; a Imprensa, chamada para acompanhar a “manifestação “espontânea”, filma não só o “evento” como o percurso em ônibus; os “intelectuais”, esses “filosofam”; a “escola de cinema” edita; o feicebuqueiro rotula. O que é divulgado no vídeo – que, aliás, logo no início, após o nome dos patrocinadores, exibe o seguinte texto bastante elucidativo: “em agosto de 2000, um grupo de manifestantes organizou uma ocupação em um grande shopping da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro” – não corresponde a qualquer atitude “espontânea” de quaisquer eventuais consumidores ou curiosos; corresponde, sim, à teatralização de uma alegada “discriminação” que “a sociedade” praticaria contra determinados indivíduos a pretexto de sua origem social. Ela foi programada, planejada, bem coordenada, bem ensaiada, inclusive com discurso na ponta de língua, decorado pelos manifestantes e com a exposição inconseqüente de idosos e crianças a qualquer tipo de distúrbio que pudesse ser provocado pela ação dos próprios manifestantes ou pela reação dos lojistas e dos policiais que foram chamados a manter a ordem e a segurança dos demais presentes naquele espaço ameaçado de sofrer um tumulto. Por que ameaçado de sofrer um tumulto? Porque a intenção era filmar, divulgar e “denunciar” qualquer reação ao que fugisse do cotidiano daquele espaço. Portanto, a intenção era provocar essa reação.    

 

     Qual “excelente reflexão” poderemos fazer a partir do que nos foi informado pelo vídeo? E como a Sociologia poderia interpretar o que nos foi mostrado?

 

      Sociologia é algo além e muito diferente de uma mistura grosseira de psicologia de quintal + filosofia revolucionária barata + estatística seletiva. Sociologia é coisa séria porque é coisa útil, mas só será coisa útil se for coisa séria. Muito embora os politiqueiros tenham encontrado, no espaço acadêmico a ela originariamente destinado, um campo aberto a um proselitismo que se desenvolve sem qualquer controle disciplinar, de forma absolutamente contrária aos fundamentos da disciplina, caracterizando algo em que a Sociologia de fato não poderia, jamais, ter-se transformado. Porque seu nome rotula o seu avesso, Sociologia que é Sociologia se vê a bem dizer ausente de nossas Escolas e Universidades. O desvirtuamento e a desmoralização da Sociologia enquanto disciplina objetiva não é de hoje, mas, hoje ainda, quem considere ou acredite que sua finalidade seja fazer agitação, levantar “a palavra da revolução”, “promover na fronteira esse afrontamento, esse confronto das intensidades” ou coisa parecida não passa de um idiota. Isso não é e nunca foi Sociologia. Afirmar que é Sociologia a divulgação de palavras de ordem e o incentivo e a promoção de “movimentos”, sempre foi, sempre será e é apenas falta de conhecimento. Reles politicagem. Politicagem pura e simples. Má intenção. Demagogia. Nada mais. A demagogia, esta, sim, servirá um bocado a uma “excelente reflexão sociológica”.

 

      Aliás, para quem gosta de Sociologia, o demagogo não é exatamente um “tipo ideal” e a demagogia será um prato cheio de realidade…

 

*** 

       Ora, não é preciso ser um sociólogo nem ser um gênio, basta saber somar dois com dois e saber encontrar quatro para concluir que os “princípios” de “liberdade e igualdade” são incongruentes; e para concluir, imediatamente em seguida, que, pelo menos da maneira como vêm sendo divulgadas pelos ditos “revolucionários” e compreendidas pelo vulgo, como essenciais à “busca da felicidade”, não passam de um blefe, ou, no máximo, de um mito. Alguns procuram, no entanto, que esse mito – muito favorecido pela Declaração de Independência dos EUA (1776) que terá sido inspirada em texto do Thomas Jefferson, não exatamente a partir da Revolução Francesa (1789…) que lhe é posterior – mova o mundo. Quem pretender atribuir excelência ou mesmo alguma viabilidade a um sistema qualquer construído a partir de dois ou mais “princípios” incongruentes apenas demonstrará que está brincando com coisa séria, que não tem juízo algum ou apenas quer confundir.

 

      Uma única frase de um único parágrafo desse texto de Jefferson, na íntegra ou adaptada ao discurso laico, presta-se a justificar qualquer desarranjo e qualquer veleidade pretendidos em âmbito social: “todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”. Seria interessante que lêssemos o texto por completo, colocando-o em suas circunstâncias, ou, pelo menos, que lêssemos com bastante atenção o parágrafo abaixo transcrito, que diz da igualdade primordial e dos direitos inalienáveis à liberdade e à procura da felicidade, os chamados “princípios” que passaram a ser tão “respeitados” pelos ditos libertários: 

 

Consideramos … que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que, a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. …“

 

      Convenhamos: vida é vida. A vida é algo objetivo que deve ser tratado objetivamente. O direito à vida incluirá o direito a respirar, comer, beber, dormir, abrigar-se, ter boa saúde, locomover-se, procriar e, principalmente, desenvolver-se plenamente, ou seja, ganhar consciência plena das relações que o indivíduo necessariamente experimenta enquanto ser da Natureza e da Cultura, para que escolhas possam ser feitas; incluirá também, por decorrência, o direito a (ou o dever de?) produzir e a divulgar conhecimento que possa ser útil a todos, evitando que se propague tudo o que possa ser nocivo à vida, inclusive e principalmente a ignorância. Incluirá ainda segurança, que significa proteção não só contra seres mal intencionados como contra forças irracionais da Natureza. Ou seja, as condições materiais básicas de vida devem ser garantidas ao indivíduo que, para tanto, organiza-se politicamente.

 

       Felicidade e liberdade não são, nunca foram nem serão condições de vida – são “estados de espírito”, e dependem visceralmente das maneiras de ver o mundo e de lidar com ele. Apesar de que cérebro seja matéria e deva também ser tratado objetivamente, felicidade e liberdade são produtos subjetivos, ou seja, vinculam-se e obedecem a fatores estritamente individuais, a emoções, que o cérebro do indivíduo processa da forma como for capaz de processar. É, pois, pura ilusão supor que o direito à vida deva ou possa ter o mesmo valor que os tais “direitos” à liberdade e à felicidade. Mais que pura ilusão, porém, será estupidez e má-fé pretender que o direito à vida, esse sim, inalienável, desde que o seu portador o respeite, inclua qualquer “direito” do indivíduo a impor aos demais sua específica tradução do que seja um estado de felicidade e liberdade. 

 

      A liberdade e a felicidade de cada um não dependem de uma receita pronta, pois dependem das escolhas feitas conforme as circunstâncias de cada um. Nenhum regime político poderá, portanto, responsabilizar-se por elas. A sensação de liberdade e de felicidade depende de decisões exclusivas ao indivíduo, que se alteram no tempo e no espaço de acordo com as condições do meio e com o conhecimento que o mesmo indivíduo incorpore ao seu raciocínio, que é o que determina suas ambições. Inclusive e principalmente depende do conhecimento a respeito do leque de opções que lhe possa estar aberto e do porquê dele existir. Essas escolhas serão ou não cumulativas, mas sempre serão sucessivas; e serão determinadas pelo caráter de cada um. Não dependem da constância do entorno. Portanto, escolhas diferentes das que possam ter sido feitas em tempos anteriores não indicam que tenha havido qualquer alteração em uma personalidade. Conhecimento não altera a personalidade do indivíduo. Ele o terá para o Bem ou para o Mal. E nenhuma personalidade se “converte”. Por mais conhecimento que tenha o indivíduo, sua personalidade depende exclusiva e rigidamente da maneira como ela pôde ser estruturada. Cada um é o que é e morrerá sendo apenas o que é e sempre foi. Considerando o indivíduo, e apenas o indivíduo, submeter-se intelectualmente aos autoproclamados “mais sábios” e às suas “verdades”  subjetivas será nada mais nada menos que abdicar absolutamente da liberdade intelectual, fundamental a qualquer outro tipo de liberdade, assim como submeter a própria felicidade a um conceito de felicidade alheio será abdicar da felicidade.

 

      Sendo assim, a liberdade e a felicidade que as escolhas individuais possam proporcionar ao indivíduo serão sempre relativas, nunca absolutas. Estarão em relação com as pressões do meio e em relação com o próprio sujeito em suas relações. Sendo assim, também, apenas poderemos supor condições apropriadas à igualdade de oportunidades, à liberdade e à felicidade de todos (não de cada um) se nos referirmos às condições políticas, públicas, de todos, não às condições individuais de cada um, mesmo que em seu grupo. Ainda assim, no entanto, não há como um regime político garantir a todos o exercício de uma igualdade e uma liberdade absolutas, nem sequer há como acenar com um arremedo delas caso todos não compreendam que a liberdade individual de cada um, se não for controlada, conflitará com a liberdade individual dos demais. Nem há como um regime político garantir a busca da felicidade de todos, se a felicidade de cada um depende do que faz cada um feliz, podendo ser esse direito à felicidade de alguns, se não controlado, traduzir-se exatamente no exercício do que faz os demais indivíduos muito infelizes, porque privados da vida em sua total dimensão. Mesmo que todos os indivíduos tenham nascido em semelhantes condições. 

 

      Fora do registro político e dos limites do público, tentar providenciar a igualdade entre todos será algo racionalmente inconcebível, porque é algo absolutamente inviável. E de fraternidade, então, nem há que falar. E apenas no registro político, racional, não emocional, estão a igualdade, a liberdade e a felicidade de que falou Jefferson. Essas não correspondem, em absoluto, à igualdade, à liberdade e à felicidade individuais, mas a ambições políticas mais nobres, àquelas igualdade, liberdade e felicidade que dependem diretamente da garantia que o Estado possa oferecer a cada um, e da forma de Governo que possa ser adotada por comunidades políticas suficientemente coesas e maduras, com ambições à Soberania – e, no caso específico, Jefferson se referia às colônias inglesas na América. Não estivessem nesse específico registro e nesses específicos limites, e poderia ser perguntado, aos que se consideravam por seus próprios méritos e vontades como pertencentes a uma nova nacionalidade, potencial que ela fosse, por que razão aos ingleses colonizadores não deveria ser reconhecido o direito à sua própria liberdade e à sua busca da felicidade…

 

      Exatamente porque os Homens fazem suas escolhas, nenhuma forma de Governo poderá contar para sempre com indivíduos “mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram”. Esses indivíduos, desde que não “por motivos leves e passageiros”, terão o direito bem como o dever de “instituir novos Guardiães para sua futura segurança“, ou seja, um novo Governo, afastando os que só pretendem destruir uma comunidade na sua mais elevada expressão política, em sentido muito mais amplo que o de qualquer dado grupo e muito mais real e mais consistente que qualquer dita “humanidade”, afastando os que abusam de suas funções, os que usurpam dos demais o direito, esse sim, inalienável e de todos, à vida. Esse direito à vida, e, em se tratando de Homens, também à vida política, cultural, a ninguém garantirá a liberdade ou a felicidade pessoal, particular. Mas poderá e deverá garantir o direito de qualquer um a fazer escolhas. Em uma sociedade bem estruturada, pois, quem escolher mal que agüente as conseqüências. 

 

     O indivíduo não é uma ilha e quem o trata como tal simplesmente não percebe a realidade. Mas ele não se confunde com qualquer grupo ou qualquer comunidade. Sendo todos conscientes de que do respeito ao direito à vida, à própria e à dos demais (dos que respeitem a vida de todos, bem entendido), depende a vida e também a felicidade e a liberdade de cada um e de todos, torna-se bem fácil lidar com conflitos de consciência, de bairro, de Governo – resolvem-se guerras, resolvem-se responsabilidades, resolve-se tudo. Ou, pelo menos, encontra-se mais facilmente um caminho que tentará nos levar a resolver. Um Estado bem administrado é um exemplo que poderá observado e poderá ser imitado. Entregue aos demagogos, no entanto, será apenas visto com desconfiança.

 

      Por outro lado, a igualdade, a liberdade e a busca da felicidade não dependerão de que uma “consciência coletiva” seja formada. A coletividade não tem pernas, nem braços, nem olhos, nem ouvidos, nem, muito menos, terá consciência, em absoluto. Consciência é atributo exclusivo do indivíduo. Se o indivíduo, no entanto, não tem noção (ou prefere não ter) do seu entorno e da sua dependência dele (o que depende em muito da educação política que recebeu, do grau de coerência, portanto, que a orientou), tudo se tornará muito e muito difícil. Esse entorno não abrange um universo em expansão, mas é dado pela própria Natureza das coisas e dos Homens, obedece a limites que identificam e classificam o indivíduo como um de alguns entre todos nesse universo, limites nos quais se encontra tudo aquilo de que necessariamente a vida do indivíduo depende, aos quais o indivíduo deve procurar adaptar-se sem pretender criar regras universais que pudessem ser impostas ao mundo inteiro; são limites estritamente humanos, portanto, também culturais, também políticos, nos quais o indivíduo em seus próprios limites se identifica, se organiza e pode e deve participar em situação de igualdade aos demais, limites nos quais o indivíduo deve procurar fazer, da melhor forma, o melhor para todos os que reconhece como seus semelhantes. Nesses limites, políticos, racionais, naquele mesmo registro, político, racional, nos quais uma identidade de propósitos possa manifestar-se, poderá ser encontrada a tal fraternidade que a Revolução Francesa tentou proclamar. 

 

      Apelar aos “princípios” de liberdade e igualdade para tentar justificar ou mesmo para explicar o tumulto provocado por bandos organizados por anarcóides que, para mostrar que “existem”, invadem os espaços públicos onde a permissão de freqüência exige do comportamento individual a obediência a certos protocolos não só formais como legais, é pura demagogia. Nada mais. Que, esta sim, a demagogia, também servirá um bocado a uma “excelente reflexão sociológica”.

 

      Aliás, para quem gosta de Sociologia, o demagogo não é exatamente um “tipo ideal” e a demagogia será um prato cheio de realidade…

 

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      Muito bem. Grande parte da Imprensa, grupo de interesse político e comercial que idiota não é, nem foge dos seus objetivos, convenceu-se de que terá todo o direito de fugir dos fatosProvavelmente considerando que certos sinistros são muito medíocres, e irritando-se com isso, convenceu-se também de que terá todo o direito de inventar passarinhos engaiolados que morrem cantando enquanto o nosso pardieiro nacional é lambido pelas chamas desencadeadas por incendiários. Convenceu-se de que o povo só gosta desse tipo de notícia. Dramática. Convenceu-se de que o povo gosta principalmente desse tipo de imagem. Muito dramática. Elas emocionam multidões e vendem-se por si mesmas. E convenceu-se de que, nas classes A, B, C ou Z, ler ou não ler será um detalhe insignificante. De acordo com o que nos diz Nelson Rodrigues, esse convencimento é bastante antigo. E parcela dele talvez tenha origem e, com certeza, tem apoio nos fatos. Alguns fatos merecem e sempre mereceram ser observados pela Imprensa. Outros não.      

 

      Grande parte da Imprensa pensa e age de forma muito semelhante no mundo inteiro. Já as sociedades hoje encontradas no mundo inteiro são estruturadas e, sejam socialistas ou liberais, nelas haverá quem mande e haverá quem obedeça. O que permite ou até obriga a que alguns consumam mais e outros consumam menos. E faz, de todas elas, “sociedades de classes”. Sendo avaliadas subjetivamente, umas poderão parecer mais justas que outras. Sendo avaliado subjetivamente, um estado de liberdade e igualdade poderá ser definido como sendo aquele em que todos fazem “turismo” onde queiram, no momento em que bem entendam. Sendo avaliada subjetivamente, a sensação de felicidade poderá ser definida como dependente do poder de consumo. Os indivíduos apontados como pertencentes à classe C no território brasileiro, aqueles que compõem, segundo Rousseff, a “nova classe média”, induzidos ao consumo pelos incentivos governamentais publicados com alarde na Imprensa, terão um “inalienável” direito de exercer sua liberdade e de buscar a sua felicidade em condições de igualdade com todos os demais. Isso talvez nem mereça discussão. Se essas condições se limitam ao poder de consumo e se as questões nacionais a elas se resumem, tudo bem, ampliem-se as oportunidades de consumo da classe C garantindo-lhe postos de trabalho, administrando-se bem administrada a economia, e arreganhem-se as portas dos centros comerciais – mas não se entenderá por que não deva haver preocupação com a segurança de todos, independentemente de classe social de cada um, que não apenas economicamente se define, não só nos espaços públicos como nos espaços privados.

 

      Quanto a concluir e declarar publicamente que os “rolezinhos” devam ser desejados pelo comércio porque poderão demonstrar o poder de consumo potencial da classe C, tal como conclui e declara o presidente do Instituto Data Popular em entrevista publicada na BBC, bem, para isso será preciso um pouco mais de “sofisticação” ideológica – é preciso treinar muito, para fazer-se de muito idiota, e, ao mesmo tempo, considerar o público minimamente leitor muito idiota, pois é tentar convencê-lo de que não existe diferença alguma entre um indivíduo consumidor, um grupo inocente de seis ou meia dúzia que nada pretenda consumir, pretenda apenas ostentar e divertir-se, e um bando industriado de centenas (ou milhares) de indivíduos que só tenha por intenção promover a desordem e, a pretexto de exercer os seus direitos individuais, subjetivos, agredir o direito objetivo dos demais indivíduos. Ou seja, é preciso ser muito demagogo ou, tal como grande parte da Imprensa, estar a serviço da demagogia.

 

      A demagogia, esta, sim, servirá um bocado a uma “excelente reflexão sociológica”. Aliás, para quem gosta de Sociologia, o demagogo não é exatamente um “tipo ideal” e a demagogia será um prato cheio de realidade… E só um idiota pretenderia que a Sociologia desprezasse os fatos e limitasse seu objeto às subjetividades. Isso é muita idiotice. É idiotice em excesso. É mediocridade em excesso. Ou é excessiva demagogia. Não é, não? 

 

 

 

  

  

 

 

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