OBVIEDADES (em uma redução mais ou menos encadeada)

 
 
 
 
AMARILDO 2

   

  1. “Corruptela” (ou “corrutela”, conforme os neolingüistas possam preferir), substantivo feminino, significa: um ato, um processo ou um efeito de corromper(-se); o que corrompe ou pode ser corrompido; alteração ou perda de qualidades originais de algo; desvirtuação, abuso; CORRUPÇÃO (ou, alguém querendo, “corrução”…); pronúncia ou escrita de palavra, expressão etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social. Assim é porque assim nos dizem os dicionários.

 

      Mas nem tudo os dicionários nos dizem.

 

      Em uma Sociedade contemporânea qualquer, não apenas na nossa, setores ou indivíduos “com mais prestígio social” não serão necessariamente os mais refinados ou os mais inteligentes e mais capazes. E visto, ouvido e conferido está que uma “linguagem com mais prestígio social” não significará qualquer linguagem “clássica”, mais “erudita” ou “sofisticada”, que necessariamente fosse utilizada em ambientes sociais freqüentados por indivíduos política e economicamente privilegiados. “Linguagem com mais prestígio social” será apenas um eufemismo (ou será uma corruptela?) com o qual, de uns tempos para cá, os tolerantes com os erros cometidos contra a nossa linguagem vêm designando uma linguagem correta tentando socialmente desqualificá-la – o que resulta no prestígio que se empresta a uma linguagem troncha, desestruturada, que colabora com (usando aqui o jargão acadêmico “engajado”) a “desconstrução do discurso dominante” para que se atinja a “democracia radical” em todos os espaços sem fronteiras linguísticas, emocionais, econômicas, geopolíticas e administrativas.

 

  2. Qualquer Sociedade, da mais rudimentar à mais sofisticada, terá regras, sejam escritas ou não, sejam mais ou menos apuradas e rígidas – as que definem e estabilizam as relações entre os indivíduos, os grupos, os fatos, as coisas. Não por isso impedirão a mobilidade social. Qualquer linguagem, da mais rudimentar à mais sofisticada, também terá regras, escritas ou não. A precisão e a excelência da comunicação e do entendimento do que é certo e do que é errado socialmente (o que dispensa solenemente o vazio pernosticismo acadêmico) estarão no bom recurso à linguagem. O bom enunciado, a boa compreensão e a boa crítica tanto das regras sociais quanto das críticas que a elas sejam feitas permitirão o bom enunciado, a boa compreensão e a boa crítica das relações e do nexo, existente ou inexistente, entre palavras, frases, pessoas, lugares, coisas, conceitos, símbolos, significados… Uma linguagem não será mais bela ou mais eficiente à comunicação quanto mais frouxa, desestruturada, reduzida e improvisada for, muito pelo contrário: quando a linguagem não é precisa, a comunicação apenas provoca confusão, desordem e danos à coletividade.

 

      Embora haja setores da nossa Sociedade que pretendam limitar a educação popular a uma decoreba de pragmáticos manuais que “ensinam” métodos e meios de protesto, “ensinam” meios e métodos de uso e fruição e “ensinam” a ler instruções e a apertar botões, esses manuais não prescindem da linguagem. E esta linguagem não educa, apenas permite educar (ou deseducar) – ela é o que transmitirá conteúdos, significados e modelos de comportamento, sejam contra ou a favor de qualquer coisa, inclusive contra o tal discurso considerado “dominante” que, segundo alguns, deve ser “descontruído” para que tudo se “desconstrua”.

 

  3. A linguagem não é uma arte, não é uma filosofia, não é apenas um conjunto de sons e caracteres gráficos, nem é instrumento de libertação ou de dominação – a linguagem é uma técnica por meio da qual se permite e se produz a comunicação. Mesmo a dita linguagem poética será uma técnica, não pura invenção ou pura inspiração, que exige o conhecimento dessa técnica para ser percebida e compreendida. A linguagem será importante, portanto; mas só será importante se a comunicação for considerada importante, pois ela é fundamental à comunicação. Nada mais que comunicação uma linguagem permitirá e produzirá (ou não produzirá e não permitirá). Portanto, também, ela será um meio pelo qual se amplia ou se reduz a compreensão das relações entre palavras, frases, pessoas, lugares, coisas, conceitos, símbolos e significados. Amplia-se essa compreensão se e quando o cérebro do indivíduo tenha sido bem nutrido de proteínas, bem expandido e bem formado. Uma linguagem não promove, por si mesma, a nutrição, a formação ou a capacidade de qualquer inteligência. Mas, sem ela, o conhecimento não se acrescenta e a inteligência não se desenvolve.

 

      Uma linguagem é uma técnica que estará ao alcance de todos – basta-nos que tenhamos escola; e é o único meio que também permite que todos e quaisquer assuntos sejam compreendidos e discutidos criticamente – basta-nos que tenhamos senso crítico e o apuremos. Uma linguagem, por si mesma, nunca regride. Ela avançará, sem que se altere, sempre em seus limites formais, para acompanhar o dinamismo técnico-tecnológico que determina a obsolescência de algumas coisas e de alguns nomes; ela avançará para não estagnar e não se ver defasada e inútil. Se avança é porque se aprimorou, não porque terá regredido e se desestruturado. Se regrediu ou desestruturou-se, foi porque quem a utiliza retrocedeu no tempo, no espaço e/ou na capacidade mental.

 

  4. Certo é o que faz o bem e errado é o que faz o mal. E o bem e o mal são percebidos na carne muito antes que sejam elaborados no espírito. Uma Sociedade desregrada ou que, a cada momento, improvise regras conforme o interesse de alguns determinados grupos não será, “por sua própria natureza”, mais “científica”, mais inteligente, mais refinada ou mais justa e mais democrática que uma Sociedade que bem defina, bem enuncie, persiga e acuda suas necessidades, e que bem defina, bem enuncie e faça observar os limites da liberdade de todos e dos direitos de cada um. Como os interesses imediatos presentes em uma Sociedade são vários e muitas vezes antagônicos, os meios para que a Sociedade atinja certo equilíbrio que a todos convenha lhe são dados pelo Estado, que é uma organização política, pelas Instituições do Estado, que são públicas, das quais uma Sociedade bem formada não poderá prescindir, e pelas Instituições da própria Sociedade, que são particulares, cujas regras no que se refere ao seu alcance público o Estado definirá. Não haverá conflitos entre uma Sociedade bem formada e um Estado bem formado. Somente haverá conflitos entre uma Sociedade e um Estado mal formados.

 

  5. As Instituições colaboram (ou devem colaborar) com o aperfeiçoamento e a adequação da Sociedade aos desafios que lhe são colocados. A Imprensa e a Escola, especialmente a Universidade, são algumas dessas instituições à disposição da Sociedade.

 

      Se a lógica, o instrumental e o método que as impulsionam por vezes se assemelham, há um abismo entre o conteúdo das “ciências físico-químicas e experimentais” e o das “ciências sociais”, e há uma diferença fundamental na forma como evoluem. As primeiras evoluem a cada nova constatação de fenômenos e processos específicos em cada área em que são divididas; algumas dessas “descobertas”, corretas ou não, suficientes ou não, hão de nos parecer “definitivas” e, considerando-se o curto tempo da humanidade e o da coexistência de gerações, “imutáveis” na estrutura do universo. Transformam-se em “verdades estruturais” e dão oportunidade a que se construam modelos ou paradigmas – que não tolherão, no entanto, o desenvolvimento das pesquisas e permitirão novas descobertas, novas “verdades” e que novos modelos sejam elaborados como mais adequados à realidade. O próprio aprofundamento dessas “verdades” suscitará tal fenômeno. Se assim não fosse, hoje estaríamos ainda celebrando os modelos sugeridos por Copérnico ou Galileu ou qualquer outro modelo entre os que os precederam.  

 

      As “ciências sociais”, por sua vez, apenas evoluirão caso sejam capazes de considerar as alterações que se dão constantemente no “humor” da natureza social em virtude das mudanças nas condições objetivas e subjetivas dos indivíduos em sociedade, “humor” esse que será fortemente influenciado por decisões de curto alcance tomadas por Governos, pela propaganda, por interesses e conflitos de diferentes ordens. Elas não lidam com coisas, lidam com gente. Para essas “ciências”, o conjuntural ganha tanta ou mais importância que o estrutural. Não haverá (ou é bom que não haja) quaisquer “verdades científicas universais e absolutas” a orientar análises e pesquisas sociais (tais como são as que apoiam políticas públicas), mesmo porque nenhum “cientista” da área terá sido ou será capaz de considerar uma totalidade social em todos os seus detalhes, muito menos considerará todas as intenções que movem os indivíduos; porque todos esses “cientistas” serão influenciados por sua própria história particular e por aquele “humor social” (ou não serão humanos, serão “deuses”); porque o que é particular ao indivíduo ou a um grupo não poderá ser alegremente generalizado ao universo.  

 

      Haverá, no entanto, um princípio a definir-se (e, ao defini-lo, estará imediatamente definida uma noção de moralidade) e a fixar-se como definidor de uma linha de raciocínio; haverá um campo a delimitar; haverá um problema a enunciar; haverá conceitos a discutir; haverá lendas a descartar; haverá observações sobre o que não foi observado; haverá novas considerações sobre elementos que já possam ter sido por alguém, algum dia, considerados; haverá uma infinidade de fatos havidos a incluir nessas considerações; haverá opiniões, que poderão acrescentar-se às anteriores já consagradas, que poderão mantê-las ou derrubá-las enriquecendo (ou não) o conhecimento. Haverá muito trabalho a fazer, não apenas trabalhos já feitos a pura e simplesmente compilar e classificar, forçando a que tudo caiba, idealmente, de um jeito ou outro, em um único e mesmo processo definido, algum dia, por alguém já afastado da realidade no tempo e no espaço. O que não se confunde com qualquer “relativismo cultural”, que apenas exige idealizar, interpretar e qualificar tudo e qualquer coisa como bom, válido e correto, por mais errado e inadmissível que se demonstre, porque qualquer coisa e tudo será “relativo”…  

 

  6. A respeito da realidade social, quaisquer opiniões e quaisquer conclusões poderão ser contestadas e/ou coonestadas, a qualquer tempo. Devem ser contestadas ou coonestadas, porém, com apoio em fatos e decorrentes considerações. E essa discussão só fará bem ao pensamento. Mas, por exemplo, quando um Professor universitário vem a público contestar e desqualificar um de seus pares – seja o que for que este tenha dito em algum texto publicado, esteja o que estiver certo ou errado – argumentando literalmente que tolerância tem limites e que uma opinião não poderá ser contrária à de “pensadores como Noam Chomsky, Boaventura de Sousa Santos, Ferreira Gullar e dezenas de outros” pois, além de ofendê-los diretamente, “ofende indiretamente os leitores”, alguma coisa estará muito errada na Universidade. E na Sociedade. Isso se chama censura intelectual. E, pior: essa “crítica” exige autocensura, tal como a Igreja, julgando-se dona absoluta dos conceitos do certo e do errado, exigia dos pensadores da Idade Média.

 

      Se os acadêmicos citados “e dezenas de outros” que os seguem exigem, porque lhes é dado exigir, que suas idéias e opiniões sejam tratadas como “verdades absolutas”, não serão aqueles que a eles se opõem de uma forma ou outra, mas sim eles mesmos, esses acadêmicos autoritários e seus seguidores reacionários, os únicos que deverão ser censurados. Ou não? No exemplo dado, não se trata do cerceamento de uma ação – trata-se de uma questão prévia a qualquer modelo supostamente democrático: a de se nos será permitido pensar livremente ou não, a de se é ou não possível e permitido que alguém ouse pensar qualquer aspecto da vida social usando um quadro de referências que não seja o oficialmente recomendado e, assim, ouse contribuir com o avanço da qualidade do pensamento social. Somente em seguida virá a questão de se nos será permitido enunciar o pensamento ou não, esta, sim, uma questão que diz respeito a qualquer modelo concebido como virtualmente democrático.

 

  7. Não é possível imaginar que a Universidade, local virtual de produção de pensamento, estimule a produção de um manual de perguntas permitidas e respostas prontas. Em geral, qualquer afirmação bem estruturada a respeito de qualquer fato, fenômeno ou processo despertará, em qualquer inteligência mediana, a curiosidade e levará a que perguntas sejam feitas. Dar respostas não absurdas ou contraditórias exigirá alguma reflexão. As “verdades absolutas”, porém, hoje pululam, como sempre pulularam, não só na Academia como na Imprensa. A linguagem que deve ser utilizada nessa discussão (se ela nos for permitida), porém também, não compromete o conteúdo, não se altera em sua estrutura ou nada será dito ou compreendido.

 

      Da mesma forma como improvisações, invenções informais e/ou tribais nunca substituirão com vantagens quaisquer as instituições de um Estado bem estruturado – bem plantado em seu território, com sua Sociedade bem formada –, improvisações e invenções fonéticas e/ou gráficas não substituirão, jamais, uma linguagem bem estruturada. O incentivo às invenções e às “colagens” verbais supostamente substitutivas de uma linguagem correta, incentivo este que se faça sob a suposição de que, com ele, serão incentivados a criatividade e o saber populares, não nos trará, jamais, qualquer vantagem comparativa ou qualquer melhor inserção em qualquer utópica “nova sociedade internacional” na qual vantagens comparativas não sejam consideradas.

 

  8. Qualquer animal, assim como qualquer ser humano, será capaz de reconhecer um inimigo, liderar seus iguais, submeter-se à liderança, competir, enfurecer-se, acomodar-se, querer, recusar, temer, avançar, arriscar, dependendo do estímulo a que se veja sujeito. O entretenimento é um dos fatores capazes de estimular emoções. Embora qualquer manifestação animalesca possa transmitir emoções ou intenções, grunhidos não substituem palavras e caretas, sorrisos, lágrimas e gestos estereotipados não substituem frases bem concebidas. Dar publicidade à ignorância, porque ela convém ao livre comércio de bens e serviços, e à violência, real ou encenada, porque convém que não haja restrições a esse comércio, não significa nem substitui a transmissão de conhecimentos ou a crítica da ignorância ou da violência real ou encenada – serve apenas a que um público em tese já civilizado se habitue a conviver com a ignorância e a violência, reais ou encenadas, e as assimile e incorpore às suas ações e reações possíveis porque estarão “legitimadas”.

 

      Se a ignorância e a violência entretêm, não é porque convenham ao entretenimento – é somente porque convém a alguns setores da Sociedade que a publicidade da ignorância e da violência entretenha um público de qualquer faixa etária de qualquer classe social. Produzir essa espécie de entretenimento servirá apenas para desvirtuar as emoções e canalizá-las à obtenção de determinados objetivos cuja discussão não se colocou e não se coloca ao acesso do público.   

 

  9. Da mesma forma como o resultado de uma emoção ou de uma intenção não se sobreporá com quaisquer vantagens ao resultado da equação racional de qualquer problema que se queira resolver e/ou ao de qualquer atitude racional no sentido de resolvê-lo, não bastará, ao povo, desqualificar os setores “socialmente” privilegiados ou denunciar aos gritos e aos trancos quem os compõe – é vitalmente necessário que se encontre um conjunto de regras que seja adequado à Sociedade e observá-lo. Observá-lo estritamente. O que não implica conferir plenos direitos a todos e cada um.

 

      Se o problema em pauta é o de que alguns indivíduos e alguns setores sociais gozam de extraordinários privilégios, em detrimento de outros setores que se sentem discriminados, esse problema tem origem em que aventureiros ignorantes e incivilizados, muitas vezes criminosos, puderam se utilizar da comunicação, convenceram um público mais amplo ou menos amplo, foram e são bem sucedidos na Política local e/ou na sua atividade econômica, formaram grupos, Partidos, Governos, legislaram, julgaram e, assim, no processo, puderam esboçar e delimitar em seu exclusivo proveito as relações em Sociedade – o que provoca, ao povo inteiro, seja qual for a arquitetura da Sociedade, prejuízos incalculáveis. O que mantém as relações em Sociedade dessa forma delineada e desvirtuada é a tolerância com a inobservância das boas regras, as que estivessem bem definidas por escrito ou gravadas nos costumes em um processo que permitisse seu aprimoramento e o desenvolvimento social no sentido do bem estar geral.

 

 10. A maior ou menor tolerância com opiniões contrárias ao que cremos ser “a verdade” social indica o quanto somos ou não somos civilizados e o quanto somos ou não somos conscientes e seguros da pertinência de nossos objetivos e nossas expectativas. Mas querer conferir “direitos humanos” a criminosos e a aventureiros não justifica emprestar-lhes algum saber superior, boa índole ou tolerar seus mal feitos. O tolerância com os objetivos de aventureiros não mais que uma aventura é – é confiar no incerto e não sabido. Já a tolerância com criminosos é o mesmo que a conivência com o crime – então, crime é.

 

      A tolerância excessiva com o excesso de erros cometidos contra nossa linguagem poderia ser classificada como um pecado. Pecado não é crime, apenas pecado é. E crime é crime. De acordo com um exemplo ilustrativo do uso que se dá ao termo “corruptela”, exemplo este encontrado no Dicionário Aulete da Língua Portuguesa, “pecado não é coisa alguma nem substância, mas é efeito e corruptela”. Já crime, além de ser alguma coisa muito bem definida, além de ser efeito, de ser causa e de ser corruptela (ou seja, desvirtuamento, corrupção – o criminoso é um corrompido socialmente), será também substância. Assim sendo, o que diferiria um crime de um pecado seria a existência de substância.

 

      Ignorância nem é pecado nem é crime, mas é causa e é efeito. Crime será valer-se dela e perpetuá-la por conveniência. E os efeitos da ignorância se mostram materialmente – são, então, inequivocamente, substância. Sendo a corrupção uma desvirtuação do correto e sendo um crime, a tolerância excessiva com o excesso de erros contra nossa linguagem poderá, então, ser classificada não só como um pecado mas também como um crime. Se essa tolerância tem por motivo a ignorância popular generalizada, mantida pela falta de boas Escolas e de bons Professores, terá por pretexto a “vontade política” de que uma linguagem errada não seja considerada como ignorância e, assim, não seja envergonhada. Mas ignorância ela é, pouco importa se é ignorância muito lapidada – muitos diplomados não conseguem encontrar qualquer razão para que haja um nexo entre sujeitos e predicados – ou ignorância tosca. E essa ignorância não apenas faz que nossa linguagem seja inteiramente corrompida – ela potencializa a ignorância a respeito de todos, tudo e qualquer coisa, uma vez que uma linguagem corrompida permitirá uma comunicação corrompida e não facilitará a compreensão, pelo contrário, apenas a corrompe e a reduz. Essa tolerância não será um pecado ou um crime exata ou exclusivamente contra a linguagem, mas contra a Sociedade, contra o próprio povo.

 

 11. Se observamos que alguns setores sociais falam e escrevem de forma afetada ou de forma grosseira, reduzida, insuficiente ou inútil, reduzindo ao mínimo os assuntos extremamente graves e complexos que devem ser permanentemente discutidos pelos mais qualificados para que se busque resolvê-los da melhor forma e para que a Sociedade evolua, como um todo, a um ponto em que todos se sintam e sejam de fato responsáveis por todos, é porque as regras sociais privilegiam alguns desses setores e discriminam outros muitos, e é porque convém aos setores privilegiados que os discriminados sejam discriminados – não porque apenas alguns poucos tenham nascido mais iluminados. Alegadas “dívidas históricas” não se resolvem definindo-se que todos merecem fazer o que bem entendem ou que apenas alguns merecem impor o que mais lhes convenha. O que determina essa distorção é nada mais que a alteração, o abuso, a desvirtuação do melhor conceito de Estado, a perda de suas qualidades originais, a sua absoluta corrupção. E, corrupção, bem sabemos, é crime. Pelo menos por enquanto ainda não foi formalmente descriminalizada.

 

 12. “Cadê”, termo de uso bastante antigo, mas que já vem sendo grafado “popular e democraticamente” nos cartazes e nas pichadas dos muros como “KD”, é uma corruptela de “que é de” (pronome interrogativo + verbo + preposição), já omitido o 2º termo da locução verbal; ou seja, será corruptela de “que é feito de” alguém ou alguma coisa. “Cadê” substitui “onde está”. Na linguagem coloquial, seu uso será perfeitamente consentido, mas nenhuma gramática, apenas a ignorância e o pouco caso dedicado às formas corretas justificarão grafá-lo – e, como qualquer som, permitirão sua grafia de qualquer jeito, tal como se dá com qualquer som corrompido ou com qualquer onomatopéia, enquanto seu significado se firma, com o uso intensivo, emprestando consistência a uma busca por algo que se encontre fora das vistas. No momento, o “cadê” levado às ruas reforça a necessidade de uma busca por alguns e algumas coisas que alguns, que nenhuma regra observam, já observaram ou pretendem observar, reclamam e aproveitam da forma que mais lhes seja conveniente. Se o povo repete a pergunta “cadê” alguma coisa ou alguém, pergunta que por alguém terá sido sugerida, isso significa, inequivocamente, que há um interesse geral em que seja conhecido o que foi feito dessa coisa ou desse alguém. Não significará, porém, que esse interesse deva ou possa ser substituído por histeria ou por violência. Nem significará que o povo, de repente iluminado, esteja pretendendo conhecer qualquer “verdade absoluta” a respeito de qualquer assunto.

 

 13. O povo que reclama liberdade, participação direta na Política, segurança, escolas, estradas, hospitais… não deveria estar perguntando “cadê os meios”, “cadê o objetivo”, “cadê o esclarecimento”, “cadê a solução”, “cadê o projeto”, “cadê a educação”… “cadê a inteligência”…? Essas perguntas nunca foram às ruas, nelas não estão, e nem tudo o que desapareceu é ou quer ser reclamado. As manifestações populares que levaram às ruas cartazes com essa pergunta “cadê” referindo-se seletivamente a algumas coisas e alguns indivíduos, quando outras coisas e outros indivíduos são “esquecidos”, porque “não importariam” ao público ou porque “merecem” não ser lembrados, serão não mais que uma corruptela (uma corrupção) intelectual e material de manifestações políticas em que, em tese, pudesse estar sendo reclamada alguma decência a ordenar o Estado brasileiro e fossem minimamente válidas à Sociedade.

 

      Muitas atitudes descontroladas nas últimas manifestações “populares” colaboraram com que os ânimos se acirrassem, alguns indivíduos foram feridos, alguns prédios públicos foram depredados; nada foi proposto ou se obteve de concreto, exceto um recuo de alguns centavos no preço do transporte, o constrangimento de três ou quatro indivíduos, a ameaça de punição de Policiais que cumpriam um dever. Enquanto criminosos seguem em liberdade e, apenas eles, em segurança; a violência progride a pretexto de ser “reação”; os jovens seguem desconhecendo qualquer tipo de relação com o meio, com os fatos, com as regras, com os objetivos que não conhecem, exceto o “direito de protesto”, e seguem sem Escolas ou nelas aprendendo apenas a “desconstruir”; o território segue sem defesa; a população nacional segue sem acesso à Saúde sequer básica – na expectativa de que lhe surja um “salvador“ nos ambulatórios capengas e no vazio de idéias, cada vez mais fragmentada e desunida pela falta de comunicação física, intelectual e emocional, a fazer de conta que se organiza na proliferação de guetos reciprocamente discriminados e segregados por preconceitos cada vez mais exacerbados, a iludir-se com uma “universalidade” política e econômica que a nivele às mais intelectual e emocionalmente desenvolvidas e permitindo guiar-se pela orientação de quem paira acima dela, a ela não pertence nem pretende pertencer.

 

 14. Enquanto muito tumulto sem qualquer objetivo racional (e/ou nacional) é provocado, muitas providências, muitos conceitos, muitos recursos, muitos indivíduos que desapareceram de nossas vistas continuam sem ser reclamados e sem ser, sequer, lembrados. E as perguntas que não foram e não são feitas nas ruas não serão feitas no dia 07 de Setembro próximo, quando muitos convocam a população a que às ruas novamente ela vá, a pretexto da comemoração de uma data histórica, mas não para celebrá-la e sim para protestar. Contra quê, exatamente, de que forma, exatamente, visando a quê, exatamente, pretenderão que proteste a população os que a chamam às ruas em um dia de festa nacional, quando as Forças militares nessas mesmas ruas estarão (exibindo-se em sua deslumbrante precariedade), quando idosos e crianças as estarão prestigiando? Que estarão pretendendo provocar e “legitimar” os que convocam ao protesto contra tudo e contra todos, se absolutamente coisa nenhuma têm a oferecer em substituição ao que errado lhes parece estar? Que inteligência levarão às ruas no dia 07 de Setembro os que repercutem uma palavra de ordem de teor eminentemente anarquista ou niilista? Qual é, exatamente, o objetivo dessa repercussão? Alguém já o enunciou? Alguém já (se) perguntou?

 

 15. Se nenhum clamor popular e nenhuma racionalidade, em tempo algum, em nenhuma Sociedade, justificarão o privilégio concedido a alguns a que sejam os donos da verdade e o desprezo dedicado à experiência e às expectativas de alguns outros, se nenhuma racionalidade e nenhum clamor popular justificarão que uma Sociedade não tenha objetivos e que, por não tê-los, que ela transforme em seus os objetivos de alguns indivíduos, o que os justifica é o som corrompido de um enunciado, com intenção política corrompida; o que os justificam são a ignorância, o pouco caso com ela e uma “vontade política” de que ela se perpetue. O que os justifica é a corruptela do óbvio.

    

   

  

 

 

 

 

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