PÁTRIA

 

 

 

 “Vereis amor da pátria, não movido de prêmio vil, mas alto e quase eterno;

que não é prêmio vil ser conhecido por um pregão do ninho meu paterno.”

Luís de Camões, em “Os Lusíadas”, Canto I

 
 
 

     Não nos bastasse um “hino do Mercosul” – teratológico em todos os sentidos, inclusive o idiomático, de que nada mais direi porque já disse um bocado, mas transcrevo abaixo (*) –, eis que militantes da internacional-qualquercoisista-pela-paz-mundial brindam nosso País e outros mais, tão periféricos em termos de poder real quanto este nosso, com mais alguns versinhos politicamente corretos para que os cantemos e sigamos a canção nas Cimeiras ou sei lá eu onde ou quando (talvez alguém, por aqui, preocupado com agradar os turistas bem nascidos, tome a iniciativa de aproveitá-los nos desfiles de blocos por ocasião de nosso Carnaval de Primavera  – aquele que, de uns tempos pra cá, passou a ser celebrado em Setembro, durante aquela que, um dia, no passado, foi chamada de “Semana da Pátria”):

 

HINO DA LUSOFONIA

Refrão (//): PÁTRIA LUSÓFONA. PÁTRIA MESTIÇA. PÁTRIA DO MAR.

No passado foi o encontro de culturas e de povos. O futuro será outro repleto de tempos novos. // É nossa a Lusofonia. Vem do Mar a Unidade. Na Língua pulsa a Alegria de sermos Comunidade. // Desde Angola ao Brasil, de Cabo Verde à Guiné, de Moçambique a Portugal, de Timor a São Tomé, // desde Goa até Macau, desde Malaca à Galiza, pelo mundo, como nau, por todo o Globo desliza. //”

 

    Ó raios! Esses malditos só podem nos estar gozando!

 

    Que pátria seria essa? Pátria de quem? Façam-nos o favor! Desde que este mundo é mundo, berimbau nunca foi gaita. E pão sempre foi pão, enquanto queijo sempre foi queijo.

 

    O mar nem nos fez nem nos deu Pátria alguma. Nem Pátria de alguém será. Se temos uma Pátria, os nossos a fizeram, uma Pátria eles nos deram, deram suas vidas por ela e nós a mantivemos. Só a teremos se a tivermos mantido. Nem a língua portuguesa – a lusofonia – é ou deu-nos qualquer Pátria. Nem qualquer “Comunidade” esperta será Pátria de quem quer que seja. Muito menos o significado de qualquer dessas palavras restringe, abarca ou substitui o significado da palavra Pátria. Pátria é Pátria. Nem é um monte de gente com algum interesse em comum nem é qualquerfonia; muito menos será qualquercoisa.

 

    Pátria é algo muito amplo, profundo, elevado, complexo, mais que perfeito, mais que concreto, que, no entanto, exige certa capacidade de abstração para ser compreendido. E, como tudo aquilo que, hoje em dia, neste mundo, requeira qualquer abstração maior que a necessária para lamber um picolé, mais fácil é que seja descartado de nossas considerações. Descartar dá menos trabalho que manter. Ou parece dar.

 

    Pátria é algo a que vamos aprendendo, a cada dia mais irresponsável e inconseqüentemente, ainda que a cada dia mais inconscientemente, a não dedicar a mais mínima importância. Quando nos pertence, será aquilo a que certo discurso – discurso absolutamente cacofônico, manso ou exaltado, que não esconde o quanto é vazio, que é enunciado desde que o mundo fez-se este mundo – tenta nos induzir a tratar com indiferença, quando não a repudiar. Enquanto que, quando pertence a outros tantos, alguns outros tantos, é permanentemente glorificado, de todas as formas e com todas as palavras e com todos os recursos possíveis e imagináveis. Pátria é aquilo cujo desconhecimento nos impele a uma fé cega, surda e muda no poder “sagrado” de um mercado mundial e em uma “justiça impoluta” que uma “governança” qualquer, que alguns querem ver universal, possa nos impor; portanto, ao suicídio nacional coletivo nos impele.

 

    Se acaso soubéssemos todos o que Pátria é, poderíamos ter perfeita consciência do exato grau de importância que um idioma bem estruturado e respeitado como valor nacional é capaz de assumir em qualquer luta por direitos que queremos sejam também nossos – pois estes serão ou deverão ser os mesmos bons direitos que os demais reivindicam; e/ou ter consciência, caso seja esse idioma aviltado e utilizado com intenções reversas, do exato grau de eficácia que, como um não-idioma, ele assume em detrimento de nossos deveres para com os nossos, nossos porque iguais a nós, com um mesmo destino projetado em nosso território nacional e até mesmo fora dele. Ao perder-se a noção do que seja uma Pátria, as responsabilidades cívicas desaparecem, qualquer outro valor, por mais baixo que seja, poderá mais alto se alevantar, qualquer um, investindo-se em “árbitro do universo”, em “providência divina”, poderá apontar a qualquer “terra prometida” e qualquer interesse vil poderá justificar pretensões a direitos e a liberdades por mais vis que também estes possam ser. 

 

    Consciência patriótica não se encontra em gramáticas e dicionários de um idioma comum a vários povos, em seus sotaques diferentes ou em quaisquer coincidências ou dessemelhanças pinçadas em quaisquer grupos mais ou menos restritos ou amplos. Encontra-se apenas muito e muito unida à consciência da História de um povo. História essa que é o que faz, de um bando de gente, alegre ou triste, efetivamente um povo. Consciência patriótica não se confunde com “alegria” alguma, mesmo porque, antes de tudo, é algo que deve ser levado a sério. Muito a sério. Tanto a nossa quanto a dos demais.

 

    Exatamente porque não a temos, nós – nós lusófonos por nossa própria História, não lusófonos “de alegres”, à toa, por acaso ou por opção sonora –, todos nós ou muitos de nós – que muito mal compreendemos a nossa linguagem e muito mal nela nos expressamos, que consideramos que nos basta mal e mal compreender as demais linguagens, inclusive as meramente técnicas, e acatar como “verdades absolutas” o que nelas possa ter sido produzido e dito, ou possa nem ter sido mesmo dito ou, muito menos, produzido, que mal e mal entendemos e, mesmo assim, reproduzimos aos quatro ventos essas “verdades absolutas” –, não emprestamos importância alguma à lusofonia. Não a respeitamos e permitimos que se façam “alegres” confusões com ela, com qualquer coisa que ainda nos possa restar e com tudo isso e o céu também. Como se tudo fosse um brinquedo barato.

 

    Pátria é uma realidade da qual esse “patriótico hino da lusofonia” – que só faz marola se desliza pelos mares sem direção, com muitos de nós a cantar e a suar nos remos e com ninguém atento na gávea – pretende nos afastar. Pátria é uma idéia-força que esse novo “alegre” réquiem – em louvor a sei lá quem ou quê, tão poético e emocionante quanto possa ser a imagem de uma bela e inerme caravela no meio da calmaria oferecendo-se a ir a pique, cercada de cruzadores que dela se aproximam a todo vapor e a bombardeiam incessantemente – tenta dissolver. Dissolver em nossa consciência, bem entendido.  

 

    “O futuro será outro repleto de tempos novos” ? Divertido, isso. “Alegre”…

 

    Resta saber se, nesses “tempos novos”, estarão outros e não os mesmos antigos mares, que desde sempre conhecemos, os mesmos ventos, que desde sempre nos empurraram ou a mesma calmaria, que desde sempre nos paralisou, antecipando tempestades.

 

    Pois bem: das demais, não sei, mas a minha Pátria – a que se concebeu inteira e plena na batalha de Guararapes, alinhavou-se a cada impulso à soberania e se costurou ponto a ponto, em inúmeros dolorosos conflitos por anos e anos a fio, nas mãos de gente de todas as cores – com nada se confunde. Não que, sozinha, eu tenha algum poder, mas por cima dela só passa quem quiser e puder passar por cima do meu cadáver. Em amplo e em estrito sentidos. 

 

    Já dos demais, que não se reconhecem em suas Pátrias, não as reconhecem ou delas se envergonham, também não sei. Nem me interessa saber. Que mergulhem fundo na ilusão dos “tempos novos”. Mas quem nos garante que esses tempos serão mais corretos e menos árduos que os atuais? E quem levará a sério e confiará em uma gente que só quer saber de “novidades”? Quem a salvará? A “providência divina”?

 

    O que diz essa gente não terá qualquer importância. Nem para mim, nem para quem quer que seja que tenha um pingo de discernimento. No tudo que diz querer, nada que nos seja consistente e razoavelmente viável essa gente quer erguer, e nada ela quer ser. O que sei é que, por nos dar a entender que só quer sair caminhando e cantando alguma coisa, qualquer coisa, em “liberdade” e com muita “alegria”, ela nos é muito nociva – enquanto canta e caminha, vai confundindo, desunindo, desmontando, desbaratando, destruindo tudo o que encontra pela frente. Porque para isso vem sendo treinada, porque essa é sua função, porque a nada mais dá importância.

 

    Mais dia, menos dia, de um jeito ou de outro, porém, essa gente há de ser contida nos limites de sua insignificância. Se não pela consciência, por todas as evidências. O nosso problema, imenso – problema esse que mais se avoluma a cada vez que, “alegres”, atrás dela saímos caminhando e cantando –, e nossa tarefa, árdua – para que com ela não sejamos confundidos, acorrentados e jogados à vala comum –, serão, então, um só: reunir e colar nossos cacos, e tentar novamente nos organizar e nos impor como povos conscientes de nosso passado e de nossas próprias responsabilidades quanto ao nosso presente e ao nosso futuro.

 

    Enfim… que mais fazer agora senão voltar a explicar, em bom Português, e insistir nisso, muitas e muitas vezes, sem descanso, que só nos resta tentar resistir enquanto é tempo (se é que ainda é tempo)?

              

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(*) – quem ainda não conhece que tome um antiácido antes de ler, por precaução, porque é de chorar de dor de estômago – bem mais que ao ler a “letra” de um tango rasgado.

Dêem-se os créditos: Letra e música: Dra. Gloria Hounau – Tradução (com direito a opção): Ricardo Mascaro

 

HINO DO MERCOSUL – Os países do sul unidos, por razões tão fundas reunidos. Hoje a união regional em razão ancestral, em razão cultural em Mercosul vai se encontrar. Mercosul, Mercosul, Mercosul, união triunfal. Mercosul, Mercosul, Mercosul, nasceu para ganhar. Nas terras do açai, das uvas, do café, (1) do petróleo e do cereal semeadores, pecuaristas e mineiros trabalhando pela paz. Dessa selvas, o sol, desses gelos nevados, (2) dessas pampas úmidas nasceu. Dessas terras vermelhas e das montanhas Mercosul ao mundo se abriu. Os amigos do sul se achegam a trabalhar pela paz, pela união, pela glória em seu lugar. Os países em fim reunidos trabalhando pela paz. Mercosul, Mercosul, Mercosul, união triunfal, Mercosul, Mercosul, Mercosul, em união triunfal.”

Opção: (1) da prata, do café; (2) desses picos nevados                

 

 

 

 

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