REALIDADE, SONHOS E PESADELOS

 

 

 

 

     Recebo de um amigo mensagem com a seguinte citação:

 

     “As instituições, por muito boas que sejam, não são suficientes para manter o tipo do caráter nacional. São os homens tomados individualmente e o espírito que domina suas ações, que determinam a situação moral e a estabilidade das nações. O governo, no final das contas, costuma não ser melhor que o povo que ele governa. Quando a massa tem consciência, moral e bons costumes, a nação é dirigida honrada e nobremente; mas se, pelo contrário, está corrompida, se tem o coração egoísta e desonesto, se não conhece nem fé, nem lei, o domínio dos velhacos e dos impostores é inevitável.” – O Caráter, Samuel Smiles (1812-1904).

      

     Os últimos acontecimentos nacionais, incluindo eleições, julgamentos, placas comemorativas e denúncias, puseram, de uma forma ou de outra, nossas Instituições na berlinda. E a maioria das críticas que surgem é sobre o comportamento de indivíduos que se destacam, com certa relevância, no cenário político.

 

     Prefiro, aqui, “baixar o nível” um pouco e observar o cidadão comum que aspira e está em vias de conseguir distinguir-se, ainda que mais ou menos, dos demais que são atirados à vala comum.

 

     As credenciais declaradas no final de um texto publicado em viomundo.com.br indicam que seu autor seria “professor, mestre e doutorando em História Econômica pela USP”. Freqüenta ele, pois, como aluno, um ambiente acadêmico que pressupomos ser de excelência – aquela que é considerada uma das mais importantes Universidades brasileiras; como Professor, freqüentará outros ambientes mais, que não imagino quais sejam. Não o conheço. Mas esse seu texto voou na web entre os acadêmicos, docentes e discentes de diferentes áreas das chamadas Ciências Humanas, e mim chegou. Esse texto assim afirma e conclui:

 

     “(…) Joaquim Barbosa se tornou o primeiro ministro negro do STF como decorrência do extraordinário currículo profissional e acadêmico, da sua carreira e bela história de superação pessoal. (…) Com certeza, desde a proclamação da República e reestruturação do STF, existiram centenas, talvez milhares de homens e mulheres negras com currículo e história tão ou mais brilhantes do que a do ministro Barbosa. (…) O sonho de Joaquim Barbosa e a obsessão em demonstrar que incorporou, na íntegra, as bases ideológicas conservadoras daquele tribunal e dos setores da sociedade que ainda detém o “poder por trás do poder” está levando-o a atropelar regras básicas do direito, em consonância com os demais ministros, comprometidos com a manutenção de uma sociedade excludente, onde a Justiça é aplicada de maneira discricionária. A aproximação com estes setores e o distanciamento dos segmentos a quem sua presença no Supremo orgulha e serve de exemplo, contribuirão para transformar seu sonho em pesadelo, quando àqueles que o promoveram à condição de herói protagonizarem sua queda, no momento que não for mais útil aos interesses dos defensores do “apartheid social e étnico” que ainda persiste no país. Certamente não encontrará apoio e solidariedade nos meios de esquerda, que são a origem e razão de ser daquele que, na Presidência da República, homologou sua justa ascensão à instância máxima do Poder Judiciário. Dos trabalhadores das fábricas e dos campos, dos moradores das periferias e dos rincões do norte e nordeste, das mulheres e da juventude, diretamente beneficiados pelas políticas do governo que agora é atingido injustamente pela postura draconiana do ministro, não receberá o apoio e o axé que todos nós negros – sem exceção – necessitamos para sobreviver nessa sociedade marcadamente racista.” http://www.viomundo.com.br/politica/ramatis-jacinto-o-sonho-do-ministro-joaquim-barbosa-pode-virar-pesadelo.html

      

     Os indivíduos têm nome. Chama-se Ramatis Jacino, portanto, conforme se vê na referência ao endereço http, o autor do texto que, fragmentado, aqui transcrevo. Ele é também presidente do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial – INSPIR. Inspirando-se, por certo, nas cotas a serem atualmente obedecidas para ingresso na Universidade e no Serviço Público Federal, ele nos diz, com todas as letras, que o Governo brasileiro foi “atingido injustamente pela postura draconiana do ministro” Joaquim Barbosa no julgamento do “mensalão”.

 

     Bem, se ele nos diz que, com a condenação de criminosos, “o Governo” foi “atingido”, é ele quem o diz, e dito está. Mas se ele nos diz que essa condenação foi determinada “injustamente”, não apenas estará justificando que o Governo se apoie em quem cometa atos considerados criminosos e que alguém possa alegar tê-los cometido em nosso nome – estará julgando quem julgou uma ação que se processou em um Tribunal do Estado. O que não está, em absoluto, credenciado e qualificado a fazer. Gostaríamos de crer que não teria sido, tampouco, autorizado. Pois, se o faz, Ramatis Jacino, um acadêmico, não respeita as Instituições políticas, não respeita as Instituições jurídicas e não respeita as Instituições acadêmicas e profissionais que atribuem capacitação específica aos indivíduos.

 

     Diz-nos ele também que a nossa Sociedade é “excludente, onde a Justiça é aplicada de maneira discricionária”, o que permite o “apartheid social e étnico”. Ou seja, diz-nos que nossa Sociedade é segregacionista. Outros dirão ainda, em um eco “feminista” já meio mofado, que ela é composta de “porcos chauvinistas”… O estranho é essa Sociedade “discricionária”, “segregacionista”, “excludente”, por certo composta de “porcos chauvinistas”, ter assistido à “justa ascensão” um negro e de duas mulheres “à instância máxima do Poder Judiciário”. O estranho é essa Sociedade “discricionária”, “segregacionista”, “excludente”, por certo composta de “porcos chauvinistas”, ter assistido à “justa ascensão” um negro e de duas mulheres “à instância máxima do Poder Judiciário”. O mais estranho é que, antes, essa Sociedade tivesse permitido que, presumida e suficientemente, qualificados fossem e estivessem essas mulheres e esse negro que ascenderam ao STF – tal como, segundo alega o doutorando, “desde a proclamação da República e reestruturação do STF” foram e estiveram “centenas, talvez milhares de homens e mulheres negras” –, sem o que seus nomes não poderiam sequer ter sido cogitados, muito menos poderiam ter sido indicados e homologados. Mais estranho ainda, porém, espantoso, mesmo, será os Juízes do Supremo, em decisão recente, terem considerado unanimemente que a miséria brasileira tem cor, que neste nosso País não há brancos pobres ou sem Escola, sequer básica, e que é justo aplicar-se por, no mínimo, 10 anos uma política de cotas que reduz as chances de que os mais capazes entre os capazes cheguem às Universidades (e, agora, ao Serviço Público), dando preferência aos que se declaram negros. E a tal “afrodescendência” já não será suficiente – é preciso participar do “movimento”, ou seja, obter uma “carteirinha”, para que alguém possa comprovar ter efetivo merecimento geo-histórico-genético em grau tal que permita sua inclusão entre os privilegiados.

 

     Aquilo que qualquer um fizesse ou dissesse a respeito de qualquer coisa ou a respeito de qualquer um de nós bem pouco poderia nos importar. Um indivíduo é um indivíduo, nada mais. E, como indivíduo, Ramatis Jacino, autor do texto aqui apontado, não exatamente nos seria importante. O que diz e faz ganha importância, no entanto, por um único e grave motivo: podemos considerá-lo como um exemplo do pensamento e da atitude de muitos entre todos nós. É um único indivíduo, mas é também um modelo daquilo com que somos tolerantes e até mesmo coniventes – o pensamento e a atitude da “massa”. E o que diz e o que faz essa “massa” nas ruas não será qualquer novidade. Muito menos o que faz nas Universidades será expressão da qualquer súbita alteração da qualidade do nosso ensino básico ou superior.

 

     Sendo um Mestre, Ramatis Jacino não será um autodidata. Terá aprendido muitas coisas com muita gente, por certo. Na Academia, com seus Professores, e também fora dela, na “luta” cujo enunciado frouxo coincide com a que nossas autoridades atuais e condenados recentes alegam ter sido ou ainda ser a deles mesmos. O interessante, porém, é notar que, aqui, o doutorando só nos diz de sonhos e de pesadelos enquanto nos demonstra que sabe tocar berimbau. Assim como sabe tocar berimbau o Deputado Federal Edson Santos, um Ministro de Estado do Governo Lula, cujos parentes estão sendo expulsos do Jardim Botânico por determinação do Tribunal de Contas da União e da Justiça Federal, e que defende a tese de que o povo carioca não precisa dessa histórica reserva ambiental porque o Rio já tem muitos parques (1). Ambos nos parecem estar muito bem qualificados para promover espetáculos de artes rítmicas… E não posso saber se o acadêmico soube ou não soube bem interpretar qual seria o sonho de Joaquim Barbosa. Não conheço, tampouco, o Ministro. Mas tudo nos leva a crer que o sonho de Ramatis Jacino é que Joaquim Barbosa, por ser negro, também se limite a tocar berimbau. No STF. Para poder merecer “o axé” que todos os “negros – sem exceção –” necessitariam “para sobreviver nessa sociedade marcadamente racista”.

 

Ramatis Jacino

 

      Esta é a imagem (2) daquele que escreveu (ou apenas assinou) o texto reacionário, racista e segregacionista que transcrevo (no twitter, ele escreveu, em 21/04/11: “Estou aprendo [sic] a mecher [sic] nesse troço…” e nada mais) (3). É a imagem de um indivíduo que criança já não é e decidiu agir como age em nosso meio porque assim lhe convém agir. Ramatis Jacino escolheu ser negro, como negros são, de fato, tanto Edson Santos quanto Joaquim Barbosa. Escolheu ser negro mesmo tendo, como se vê, a pele “parda”, tal como define o IBGE, mesmo sendo um mestiço cuja cor se confunde com a de qualquer inveterado surfista “branco-mediterrâneo” e mesmo apresentando traços que poderiam corresponder aos de muitos que se declaram brancos – o que nos demonstra que pelo menos alguns em sua própria família não terão sido tão racistas quanto ele hoje quer e pode ser. Escolheu, porque quis e porque pôde escolher, incluir-se entre os 7,6% de nossa população que, segundo o IBGE, é o percentual de negros (ou dos que se declaram negros) em nossa população. Como tantos mais têm escolhido.

 

     Como se vê, esse Mestre só é negro, como quer, ou preto, como quer o IBGE, por efeito de uma declaração de próprio punho. Por opção. Quer desfrutar dos privilégios que nossa Sociedade resolveu conferir a indivíduos que têm na pele uma cor que ele não tem, mas declara ter. Privilégios que nossa Sociedade conferiu a alguns indivíduos por querer demonstrar-se discricionária, racista e absolutamente avessa à integridade nacional, porque assim o mundo lhe exige ser e ao mundo há que obedecer. Por isso também confere ela terras públicas e privadas aos 0,4% de nós (também segundo o IBGE) que se declararam “índios” para que como “índios” constem e como “índios” se mantenham – podendo algumas de nossas autoridades alegar, de cara limpa, que tal determinação será constitucional e justa pois, “conforme perícia antropológica”, há cachoeiras, rios e cascatas em que “habitam espíritos do mato, que não devem ser perturbados” (4) ou qualquer sandice semelhante.

 

     Privilégios são, todos os dias, conferidos por leis, decretos e decisões judiciais, a alguns, entre os todos que deveriam ser, de fato, “iguais perante a Lei” (5)…  caso nossa Constituição não se tivesse feito tendo por modelo a colcha de retalhos exibida em um cômodo reservado na casa de Mãe Joana. Inclusive, e principalmente, o privilégio que têm alguns indivíduos brasileiros de poder ser identificados já não pela nacionalidade brasileira e por uma dura história vivida em comum com os demais brasileiros, mas por uma (alegada) remota origem étnico-geográfica que lhes seria determinante, uma (alegada) preservação de (alegados) valores ancestrais que já se perderam no tempo e no espaço ou foram “contaminados pelo Ocidente”, que resolveram, pelas boas, de repente, assumir renegando valores nacionais; o privilégio que têm alguns indivíduos de poder, por uma (alegada) superioridade cultural que lhes permitiria uma (alegada) comunhão com a natureza que (alegam que) a civilização lhes teria tentado impedir durante séculos a fio, isolar-se no solo e nas Instituições que seriam, por definição, nacionais, e, assim, poder identificar os demais nacionais como estranhos – e, do solo e das Instituições, afastar não só os demais brasileiros como o controle do Estado nacional; o privilégio que têm alguns indivíduos de poder, à revelia da Constituição e, principalmente, de todas as boas leis remanescentes oriundas dos nossos bons costumes, declarar-se racistas por exclusiva conveniência própria e ser abençoados por políticas racistas deliberadas por quem pode deliberar contra o Estado impunemente porque como seu representante foi, pela nossa Sociedade, reconhecido; o privilégio que têm alguns indivíduos de atribuir o seu próprio racismo de conveniência a essa nossa Sociedade inteira que, desde sempre, foi miscigenada… e por aí vão as coisas sendo feitas, fazendo que, em seu túmulo, o Conde de Gobineau enrosque a ponta de seus bigodes de tanta satisfação. Em breve, o ilustre Conde poderá ter seu nome emprestado a uma praça pública (se é que já não tem).

 

     Essas são cenas de nosso pesadelo cotidiano, que se repetem e cada vez mais se avolumam e se agravam. E não há como fugir dele. Um pesadelo que nos assombra sempre que somos capazes de perceber que são muitos os indivíduos que pensam, querem e agem da forma como pensa, quer e age esse modelo de militância destrutiva que aqui lhes pôde ser apresentado. E, desses muitos, muitos são Professores, são Mestres, são Doutores ou estão em processo de qualificação nas Universidades brasileiras e estarão plantando essa “filosofia” na cabeça fértil e absolutamente oca de nossos jovens, com colheita e mercado garantidos. Indivíduos que fazem de alegada origem, alegada cor da pele, ou mesmo alegado “gênero” uma razão e um mérito maiores que todas as razões e todos os méritos. Indivíduos que vivem para, direta ou indiretamente, exaltar a si próprios, egocêntrica e narcisicamente, e nada mais pretendem que consolidar em nossa Sociedade uma visão de mundo discricionária e reacionária, que a apenas uma pequena ínfima parcela da população nacional poderia convir, em que o único princípio a ser observado será o salve-se quem puder. E, por luxo, alegam pretender que se faça “justiça social”.

 

     O pesadelo está em que, por meio desses indivíduos e outros semelhantes ou equivalentes que com essa militância são coniventes ou tolerantes por esperteza, por ignorância ou por preguiça, a integração étnica nacional, fundamental à integração social e essencial à integração política, transforma-se, em velocidade cada vez mais acelerada, de uma realidade palpável, inerente à nossa população – realidade essa que nos constituiu – em não mais que um sonho nesse profundo sono em que, faz tempo, mergulhamos. Sono do qual corremos o risco de despertar, muito em breve, num pulo, depois de levarmos um balde de água fria. O que nos provocará soluços. Mas já nada nos restará fazer senão ceder, a sabe-se lá quem ou quê, o espaço inteiro onde imaginávamos poder continuar dormindo em paz.

 

     Ou, então… Bem, talvez seja ainda possível que os indivíduos que compõem a nossa Sociedade, antes de afofar seus travesseiros e, de novo, enroscar-se, virando-se para um outro lado que lhes pareça mais confortável, tomem repentina consciência do que dizem e fazem e, em um surto de inusitada inteligência, procurem refletir em por que e para que exatamente vêm dizendo e fazendo… Quem sabe?

 

     Ou isso também será nada mais que um sonho?

      

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(1) http://www.youtube.com/watch?v=tp1PAu7S2_w

(2) http://www.cut.org.br/destaque-central/47217/ramatis-jacino-e-eleito-presidente-do-inspir

(3) http://twitter.com/search/realtime?q=ramatis+Jacino&src=typd

(4) decisão unânime da 3.ª Turma do TRF – 1ª Região –  http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/58634/

(5) TÍTULO II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – CAPÍTULO I – DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: …

  

 

 

 

  

  

 

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